Podemos ler a Bíblia simplesmente para aumentar o nosso conhecimento ou para ver a nossa fé confirmada. Não há nada de mal nisso. Uma leitura pessoal da Bíblia procura ir mais longe. Faz-nos entrar em diálogo, um diálogo que interpelara´ o nosso coração e nos irá expor. Uma leitura pessoal da Bíblia expõe-nos porque tentamos acolher conscientemente a palavra de um Outro. Em vez de nos ficarmos, como habitualmente, pelo que se passa dentro de nós, esforçamo-nos por escutar uma voz que não vem de nós, que nos interpela e nos liberta do que nos aprisiona e nos isola, uma voz que tem uma opinião de nós diferente daquilo que pensamos de nós mesmos. Será que sabemos deixar que essa voz nos desinquiete, nos diga coisas de que não nos apercebemos, nos revele aquilo que não queremos ver?

  Alteridade da Palavra! Porque esta palavra não está ao mesmo nível que os discursos que se ouvem à nossa volta, nem se confunde com as ideias que nos habitam. A Palavra de Deus apresenta-se talvez de uma forma mais pobre, pode mesmo parecer menos interessante, mas distingue-se fundamentalmente pela fonte de que provém, pois testemunha esse mistério que está na origem de tudo e que tudo sustém, esse amor que nunca poderíamos ter concebido por nós próprios.

  Neste sentido, a Palavra tem sobre nós uma autoridade única. Não é uma autoridade que se impõe arbitrariamente sem ter em conta o que somos, mas a única e verdadeira autoridade que nos faz ser e crescer. Quem acolhe esta Palavra ousa expor-se à sua alteridade e arranja na sua vida o espaço necessário para que esta se faça ouvir. Afasta tudo o que possa atravancar esse espaço. Deseja que esta Palavra seja uma companheira ao longo de toda a sua vida e para isso habitua-se ao silêncio.

  Insistir desta forma na alteridade da Palavra não significa de todo mantê-la fora de nós. Orígenes, um dos primeiros Padres da Igreja, sublinhou energicamente o facto de a Palavra que vem a mim corresponder aquilo que dentro de mim está à espera. Se pudéssemos comparar a Escritura a um poço, a uma fonte, “também seria verdade que cada uma das nossas almas seria um poço de ´agua viva”. “A ação de Cristo como Verbo de Deus no tempo presente consiste em remover a terra das nossas almas, libertando a fonte que nelas se encontra”. Assim, ainda que a Palavra deva vir até nós a partir de fora para remover o que impede a fonte de correr, ela não nos é estranha. A Palavra liberta dentro de nós o que é já de Deus. Aquele que fala na Palavra, falará também no mais profundo de si próprio.

  Para nos deixarmos tocar pela palavra é preciso muita simplicidade. O caminho percorrido pela Igreja ao longo dos séculos dependeu muitas vezes de homens e de mulheres que confiaram na Palavra e a puseram em prática sem hesitar. Mesmo compreendendo muito pouco, esse pouco era para eles tão evidente e tão urgente que não podiam fazer outra coisa senão pô-lo em prática. O autor do Salmo 119 diz muito claramente que não ´e conveniente escondermo-nos atrás da competência de pessoas com mais experiência, os mestres (v.99): devo ousar expor-me, “colocar a minha vida continuamente em perigo” (v.109), porque agora ´e o próprio Deus que “me ensina” (v.102); cabe-me então “apressar-me e não demorar em cumprir o que aprendi” (v.60).

  Nesta simplicidade há necessariamente uma parte de solidão. Devo assumir esta solidão perante a Palavra, porque esta me interpela pessoalmente. Devo assumi-la particularmente nos momentos em que me deixa pouco à vontade. Muito frequentemente, de fato, a Palavra coloca-me numa fronteira: como passar do que parece humanamente impossível ao que pode ser possível com Deus? Sentir-me-ei tentado a refugiar-me em considerações teóricas ou a esconder-me por detrás da opinião de outras pessoas, ou estou preparado para estar a sós com a Palavra? Esta interpela o mais profundo do meu ser e aponta para o que ninguém pode fazer em vez de mim.

  Tal como aconteceu no passado, em que a tradição envolveu de tal forma a Palavra que lhe retirou a sua força explosiva, corremos o mesmo risco hoje em dia devido ao grande desenvolvimento dos estudos exegéticos, que podem, também eles, introduzir um filtro, paralisando-nos com demasiadas informações, verificações e análises. É preciso reconhecer, no entanto, que, na realidade, tanto a tradição como o trabalho exegético podem ajudar-nos de forma determinante a confrontarmo-nos com a Palavra: a tradição (sobretudo a mais antiga) pela sua profunda preocupação em não se afastar da Palavra, mas de a aplicar no presente; e o trabalho exegético, ao pôr em evidencia as circunstâncias em que surgiram os textos, permite-nos fazer analogias com as nossas circunstancias presentes.

  A solidão necessária a uma leitura pessoal da Bíblia deve ser bem digerida. Ao procurar deixar-me tocar pela Palavra, não posso manipulá-la e fazê-la dizer aquilo que me convém, pois, esta Palavra não me pertence. É “outra” e essa alteridade tem de ser respeitada até ao fim. A Palavra pertence Àquele que a disse e que a confiou a uma comunhão de crentes de todos os tempos e de todos os lugares. Até na minha solidão, a Palavra chega até mim graças a uma obediência que atravessou séculos. A leitura que faço dela, partilho-a com toda a Igreja, com todos os “santos” que dela viveram intensamente. Se esquecesse a Palavra, poderia iludir-me relativamente a mim próprio e ao mesmo tempo afastar-me de uma prática verdadeira. Expor-me à Palavra implica respeitá-la como algo que não é nem será minha propriedade pessoal.


Fonte: Caderno 8 da ComunidadeTaizé, O pão da palavra e do Silêncio, Ir. François.