O que é? Como e quando se costuma fazer? [1]


É quase um imperativo nas celebrações das comunidades de base e grupos ligados a pastorais sociais ‘ligar liturgia e vida’, como se costuma dizer. Um dos meios para se realizar essa ligação é abrir um espaço em que se convida os participantes a ‘trazer fatos da vida’. A fala pode ser provocada por uma pergunta como essa: “O que aconteceu de importante?”, ou: “Quais os fatos da vida que os irmãos e irmãs trouxeram para essa celebração?”... Pode ser feita logo após a saudação ou no início da liturgia da Palavra. No Ofício Divino das Comunidades vem após a abertura... Em grupos pequenos, pode se transformar numa conversa informal, mais longa. Numa celebração costumeira, esse momento se restringe normalmente a citar os fatos, sem maiores comentários. Um painel na entrada do local de celebração poderá trazer fotos ou recortes de jornal ou algum cartaz relacionado com os fatos. Numa celebração de massa ou com assembléia grande, a equipe que lidera a celebração se encarrega de lembrar os fatos ou poderá provocar uma conversa de dois a dois (cochicho) ou em pequenos grupos de 3 a 5 pessoas. Em alguma celebração especial como romarias ou jubileus, a recordação da vida é às vezes apresentada em forma de dramatização, ou jogral. Na celebração dos mártires, sua vida e suas lutas são expressas por meio de testemunhos e outras falas, faixas, símbolos, cantos...


Recordação da vida e memória bíblica
Mas, por que contamos fatos da vida numa celebração litúrgica? A liturgia cristã, como a liturgia judaica na qual encontra suas raízes, parte de acontecimentos, gira em torno de fatos. Não cultua um Deus fora ou acima da história. Não situa a salvação fora da realidade humana. Ao contrário, lembra as intervenções libertadoras do Deus da Aliança na vida do povo, na realidade pessoal e social. A constituição conciliar Dei Verbum, sobre a revelação divina, no item 2, explicita a relação entre texto bíblico e acontecimento: Deus se revela “...através de acontecimentos e palavras intimamente conexas entre si, de forma que as obras realizadas por Deus na história da salvação manifestam e corroboram os ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras. Estas, por sua vez, proclamam as obras e elucidam o mistério nelas contido”.


Desvendar e celebrar a presença dinâmica de Cristo ressuscitado na transformação do continente latino-americano
A Igreja latino-americana, levando a sério a renovação da Igreja oficializada no concílio Vaticano II, tentou desvendar as ‘páscoas’ operadas por Deus através da atividade humana, na realidade do continente, principalmente na vida dos pobres. Cristo se identifica com os pobres e se associa à sua caminhada de libertação. Se a páscoa está acontecendo na atualidade, é preciso que seja proclamada, celebrada: ‘Páscoa de Cristo na páscoa da gente, páscoa da gente na páscoa de Cristo’[2]. E o primeiro passo para isso é que os fatos sejam relatados na assembléia litúrgica em forma de narrativas, testemunhos, dramatizações, fotografias, recortes de jornal, símbolos...


Na memória litúrgica, quatro momentos: contar; interpretar; agradecer, suplicar, pedir perdão; comprometer-se
Nem tudo o que acontece é vontade de Deus. A comunidade precisa discernir, desvendar, tentar ver o que há de presença divina, evangélica, pascal, nos acontecimentos vividos e apresentados, dentro de determinado contexto social e cultural. Nos sinais dos tempos, isto é, nas tendências características que marcam a sociedade e cultura de determinada época, a comunidade reunida deve discernir quais são os sinais de Deus, quais são os sinais do Reino que está crescendo dentro desta realidade, até sua plena realização, por graça de Deus. Esse discernimento da comunidade é uma atividade espiritual; é realizado com a ajuda do Espírito Santo. É baseado nesse discernimento, realizado no Espírito, que se agradece, suplica, pede perdão ao Senhor e se compromete com o seu reino.


A recordação da vida na dinâmica de uma celebração
Contar os fatos é apenas a primeira de uma série de momentos dentro da celebração litúrgica; é preciso levar em conta os momentos que virão mais adiante e com os quais a recordação da vida tem ‘tudo a ver’: a homilia, as preces, a ação de graças, os ritos de comunhão, os salmos e cânticos bíblicos no ofício divino... Por isso, é melhor que a recordação da vida não seja feita em forma de prece, nem de ação de graças, nem de compromisso, nem de ‘intenção’ por alguma pessoa ou situação. Pois constitui apenas um primeiro momento que terá seus desdobramentos ao longo da celebração.


A vida venceu a morte
Que tipo de fatos convém relatar na recordação da vida? Convém lembrar aqui o que diz a constituição conciliar Gaudium et Spes, sobre a Igreja no mundo de hoje, no item 1: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens [e mulheres] de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontre nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração”.  Portanto, todos os aspectos da vida humana, principalmente da vida dos pobres e de outros sofredores, merecem ser expressos e contempladas na liturgia, como possível lugar de encontro com o Senhor, lugar de sua revelação.


Desafios
A recordação da vida nascida na Igreja dos pobres é um novo elemento ritual indispensável nas liturgias de comunidades cristãs atentas à ação de Deus no mundo, atentas à presença dinâmica de Cristo Ressuscitado e de seu Espírito no coração da vida, rumo à plena realização do Reino. Por isso, a título de desafio e de avaliação, as comunidades interessadas poderiam se perguntar: A comunidade tem consciência de que é chamada a discernir e celebrar a ação pascal de Deus em nossa realidade atual, em nossa vida pessoal e social, em nossa história? As celebrações da comunidade incorporaram este novo elemento ritual chamado ‘recordação da vida’? Em que momento da celebração? Todas as pessoas se sentem com o direito de se expressar? Sabem do valor desta parte da celebração? A recordação da vida aparece como um elemento estanque, isolado? Ou costuma repercutir em outros momentos da celebração como, por exemplo, na meditação dos salmos, na introdução às leituras, na homilia, nas preces, na ação de graças, na comunhão...?
Principalmente na homilia, procura-se discernir, com a ajuda do Espírito Santo e dialogando com as escrituras sagradas, o sentido pascal dos acontecimentos? A celebração a partir da vida leva a um re-encantamento de nossa maneira de ver a realidade (pessoal e social)? Leva a comunidade a encarar a vida com esperança e a assumir com alegria sua parte de responsabilidade na transformação pascal da realidade?
__________________________________________

[1] Trechos de um artigo de Ione BUYST, Recordação da vida, um novo elemento ritual para uma liturgia ‘ligada à vida’, In: VV.AA. A esperança dos pobres vive; coletânea em homenagem aos 80 anos de José Comblin. São Paulo: Paulus, 2003, pp. 377-387.

[2]  Cf. CNBB, Animação da vida litúrgica no Brasil, item 300.