A Herança do Pobre de Assis
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
Não foi à toa que o Santo Padre
escolheu o nome de Francisco para o seu pontificado. Além de um dos nomes mais
difundidos por todo mundo, trata-se de uma das figuras que deixaram no
pergaminho da história um rastro escrito com pegadas de amor e caracteres de
fogo, como Mahatma Ghandi, Edith Stein, Mestre Eckhart, Nelson Mandela, Madre
Tereza de Calcutá, Oscar Romero, Martin Luther King, Irma Dulce, entre tantas
outras. Não seria exagero afirmar que Francisco, também ele pobre, humilde,
casto e obediente, retoma radicalmente a Boa Nova de Jesus Cristo nos primeiros
séculos do segundo milênio. A cidade de Assis, por sua vez, tornou-se um lugar
de peregrinação para centenas e milhares de pessoas, especialmente jovens. E
mais que isso, um centro de espiritualidade e de irradiação para a busca da paz
em nível mundial.
Do ponto de vista da Vida
Religiosa Consagrada (VRC), e mais particularmente do voto de pobreza,
Francisco agrega um aspecto que hoje está na ordem do dia não só dos países e
respectivas autoridades, mas também de numerosas instituições, entidades e
organizações da sociedade civil. Ou seja, a chamada “pobreza evangélica” amplia
seu raio de visão e de ação, incorporando a preservação e a defesa do meio
ambiente. De fato, um estilo de vida sóbrio, frugal e pobre (não miserável), de
acordo com o Evangelho, constitui um dos desafios para o que atualmente se
convencinou chamar de sustentabilidade do planeta. Isso significa que o tema da
ecologia se associa e se enriquece com as exigências inerentes à pobreza
evangélica, resvestindo-se de um novo sentido místico.
Por outro lado, o voto de pobreza
passa a ser entendido não somente (ou não sobretudo) como uma renúncia, e sim
como uma descoberta, isto é, como uma forma de respeito por todas as formas de
vida (humana, animal, vegetal), pela biodiversidade, bem como pela defesa dos
diferentes ecossistemas. Nas palavras do Livro do Gênesis, por exemplo, a
aliança de Deus com seu povo é estabelecida não apenas em nome dos seres
humanos, mas em nome de “todas os seres vivos que se movem sobre a face da
terra e de todas as gerações”. Prevalece nesse pacto uma dupla preocupação: com
a riqueza e a pluralidade da vida, por um lado, e, por outro, com a
continuidade da vida no futuro.
Evidentemente não podemos ser
ingênuos. Menos ainda igênuos úteis! Se o objetivo é a defesa e a preservação
do meio ambiente e da vida em todas as suas formas, não basta modificar o
comportamento individual, grupal ou comunitário em relação aos recursos
naturais. É amplamente conhecido e notório que os maiores responsáveis pela poluição,
destruição, desflorestamento, desertificação e devastação do planeta são os
grandes empreendimentos nacionais e multinacionais ou transnacionais (projetos
de mineração, de pecuária, agroindústria, agrocombustível, agronegócio...). O
oxigênio do ar e das águas, sangue real da vida planetária, se vê gradual e
implacavelmente contaminado, envenenado! Por toda parte despontam medo,
insegurança, dúvida e angústia!
Faz-se necessário distinguir a
responsabilidade de cada pessoa, grupo ou comunidade, por uma parte, e a
responsabilidade das nações e empresas, por outra, no ritmo febril e alucinado
da produção-comercialização-consumo. E, consequentemente, da aceleração do
aquecimento global, tema que vem ganhando cada vez mais notoriedade. O mercado,
na busca frenética pela maximização de lucros e acumulação do capital, dá as
costas à mãe natureza, além de ignorar o direito sagrado das gerações futuras.
A política econômica em geral se concentra no potencial de exploração que, aqui
e agora, pode ser extorquido da terra, do ser humano e do patrimônio cultural.
As necessidades básicas da população, na base da pirâmide social, e o luxo
ostensivo das classes dominantes, comodamente instaladas no seu topo, se
sobrepõem à absoluta urgência de uma planejamento de longo prazo, que leve em
conta não somente os desejos do presente imediato, mas também o futuro do
planeta e da biodiversidade que sobre ele resiste a duras penas.
Nessa perspectiva desafiadora,
entra em cena a figura de Francisco, acompanhada do espírito de “pobreza
evangélica” que marcou seu estilo de vida, seu testemunho e toda sua obra.
Temos aí uma fornte de inspiração, seja no sentido de revigorar a VRC em sua
intuição mais genuína, seja no sentido de uma nova forma de realacionar-se com
a natureza, com as coisas e com as pessoas. Para o pobre de Assis, o termo
“irmão” denomina não somente as pessoas (intrafamiliares, conhecidas ou
desconhecidas), mas igualmente o sol e a chuva, a terra e a água, a lua e as
estrelas, as pedras, plantas, animais... E seu Canto das Criaturas constitui um
poema inigualável por sua ampla visão da fraternidade universal.
Visão que, em sua dimensão
profética, contrasta fortemente, energicamente, veementemente com a fome e a
miséria, a pobreza e a exploração, a violência e a injustiça nas relaçaões
interregionais e internacionais. Com efeito, ao lado do desperdício de
toneladas de alimento, constata-se que, em pleno século XXI, cerca de um bilhão
de pessoas ainda se nutrem de forma insuficiente. Ao mesmo tempo que se
verificam inovações tecnológicas em todos os campos da da produção e do
conforto, persiste o tráfico de pessoas humanas seguido de formas de trabalho
análogas à escravidão. A concentração da renda e da riqueza convive com o
reverso da medalha: abandono e exclusão social.
De outro lado, centenas de
milhões de seres humanos, em todo o mundo e nas mais diversas direções, se põem
em fuga do lugar em que nasceram, na busca desesperada de uma terra que lhes dê
“pão e chão” e à qual possam chamar de pátria. Apesar de rígidas leis e do
controle nas fronteiras, as águas da vida rompem todos os obstáculos na
conquista do sonho futuro. Mais grave ainda, em meio a essas tensões,
conflitos, guerras e turbulências, uma enorme multidão anônima perde a vida
pelas estradas do êxodo, sejam estas as areias do deserto, as águas do mar ou o
cansaço da viagem. Outras tornam-se irremediavelmente mutiladas no corpo e na
alma, na fé e na esperança.
Francisco é ainda um símbolo reconhecido
e universal da paz! Também neste caso, seu poema é de uma riqueza sempre viva e
atual. Interpela a todos e todas – no interior da vida religioda ou não – a ser
“instrumento de paz”, convidando-nos substituir o ódio, a ofensa, a discórdia,
a dúvida, o erro, o desespero, a tristeza e as trevas, respectivamente, pelo
amor, o perdão, a união, a fé, a verdade, a esperança, a alegria e a luz. Paz
que, frente aos conflitos armados que se espalham por distintos ponto do globo,
constitui uma das aspirações mais profundas e vitais de todo ser vivo.
Roma, Itália, 4 de outubro de
2014
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