Corpus Christi ou Corpo de Deus? Que corpo que essa data recorda e celebra?
Dia 11 de junho de 2020, festa ou
feriado? "Corpo de Deus" ou "Corpus Christi"? Os grandes
meios de comunicação, quando em português, designam o dia como de "Corpo
de Deus"; quando em latim, como de "Corpus Christi". Essa dupla
designação levanta a diferença fundamental entre as religiões em geral e o
cristianismo em particular. Para aquelas, "Deus é um Espírito
perfeitíssimo, eterno, criador do céu e da terra". Por isso, se o Deus das
religiões é só Espírito, para elas é de todo inconveniente falar em "Corpo
de Deus".
Cristianismo fora de Jesus Cristo não
está com nada. O Homem-Jesus-de-Nazaré veio ao mundo há mais de 2000 anos, na
Terra Santa ou Palestina. Deus, para as religiões, é totalmente transcendente e
tem sempre aqui na terra um profeta, um guru, alguém em suma, que é quem o
explicita. No islamismo, por exemplo, Deus é Allá e seu profeta é Maomé; na
religião afro-brasileira, Deus é Oxalá e intermediário é o Orixá; em países
asiáticos o Deus transcendente tem Buda como profeta. Enquanto as religiões tem
sempre seu referencial em Deus, o cristianismo fora do Homem-Jesus-Cristo não
existe. Porém Jesus que é um Homem de carne e osso é também Deus em plenitude.
Para os cristãos portanto, a festa do dia 11 está muito mais para "Corpus
Christi" do que para "Corpo de Deus".
Jesus Cristo é o Deus-Amor porque Ele
veio nos revelar o verdadeiro AMOR oblativo, total, só ele digno do nome Amor
porque, o primeiro, o captativo é falso, por isso morre logo aí adiante no
arrastão do primeiro contratempo. O próprio Mahatma Gandhi, que não era
cristão, exclamou: "A um povo de famintos, Deus só pode aparecer como
Pão" e o Homem de Nazaré disse: "Não há maior prova de amor do que
dar a Vida por aqueles aos quais se ama!" Não só falou, mas concretizou
com seus sofrimentos (paixão), morte na cruz, ressurreição e ascensão.
Tornou-se pão para ser símbolo máximo do infinito amor pelas suas criaturas.
Isto nós celebramos com a festa-feriado de Corpus Christi. As procissões que
levam o Pão consagrado por ruas, casas e janelas enfeitadas para a ocasião,
revelam uma devoção popular histórica, devota, cujo valor espiritual e cultural
tem de ser acentuado.
A ênfase que se dá a uma Presença
sacramental de Jesus Cristo não exclui, todavia, a sua presença igualmente
Real, Encarnada e Viva nos corpos daquelas pessoas que, como Ele, foram e têm
sido desprezadas, perseguidas pelo poder econômico, político e religioso de
cada época. À nossa volta existe muita gente processada, presa, condenada e
morta, justamente pela fidelidade que guardou ontem e guarda hoje à Sua Vontade
Libertadora e Redentora do mal, do pecado, da injustiça.
Uma certa cerimônia religiosa, por sua
pompa, solenidade vistosa e aparato, assim, corre o risco de fazer do seu
significado o esquecimento do seu significante, sendo capaz de imitar
ideologicamente uma exibição de autoridade e poder contra a qual o Corpo de
Jesus Cristo, vítima pobre, flagelada e crucificada pelo mesmo tipo de mando,
deu testemunho claramente oposto.
O sentido litúrgico dos ritos, das
procissões que celebram a Eucaristia, antes de reduzirem o Mistério da
Encarnação a uma Presença Mágica de solução de todos os nossos problemas,
recorda que ela apareceu numa certa mesa em que se partia o pão para todas/os, um pão material que,
além de saciar a fome física dos comensais, pretendia perenizar tanto um modelo
de amor, de partilha e convivência, quanto uma Presença Divina na história.
O fim transcendente ao sacramento
celebrado nesta quinta-feira parece não ser outro que não o do concreto modo
pelo qual esse modelo cumpre a ordem de Jesus Cristo, "fazei isso em
memória de mim". Em que o "nem
só de pão vive o homem", num contexto de repúdio à tentação de um consumo
egoísta e exclusivo, posteriormente responsável pelo assassinato do Filho de
Deus, vai ser confrontado depois pelo "...felizes os que têm fome e sede
de justiça", "...foi no partir do pão que nós o reconhecemos",
num contexto de ressurreição e de vitória sobre a morte.
Essa explicitação serve bem ao sentido e
à referência que a celebração de Corpus Christi comporta. Questiona o
reducionismo censurado pelo próprio Jesus Cristo quando advertiu de que não
"não é aquele que me chama de Senhor, Senhor, que entrará no Reino dos céus",
pois entre os sinais dos tempos que aparecem hoje, a ausência progressiva dos
sinais da Eucaristia, aquela que não é puramente sacramental, parece
inquestionável. Tão Real como Essa, aquela constitui desafio à prática de
quantas/os querem ser fiéis a uma e à outra já que, em verdade, nem deviam ser
consideradas separadamente.
Entre discutir se a data de celebração
de Corpus Christi, portanto, deve ou não ser feriado, se a procissão vai sair
com chuva ou sem chuva, quem deve ou não levar o ostensório, parece mais
importante refletir que pensamento, sentimento e ação ela nos convida a
considerar como os mais apropriados ao Amor e à Vida que ela encarna.
Salvo melhor juízo, convém que o povo participante da procissão em homenagem ao Pão Consagrado seja o mesmo que pega no arado sem olhar para trás, a que toma a sua cruz em seguimento de Jesus Cristo, a que ama os pobres e os pecadores, não os julgando para não ser julgada, a que, a caminho do Pai, espera encontrá-lo na eternidade, menos por ter participado dessa homenagem e mais por ter dado a vida pelo que aquele Pão simboliza e encarna.
por Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsín
Edição de Rafael Carneiro de Sousa
Secretário Nacional de Ação Evangelizadora
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